Um conto sem nome
segunda-feira, 21 de março de 2011
Uma
das piores agonias psicológicas que existe é quando uma pessoa infame vira uma
assombração na sua vida. Talvez seja pela falta de perdão, uma pretensa
reconciliação inacabada, ou quem sabe uma daquelas teorias freudiana possa
explicar de forma mais perspicaz. Mas a questão é; ela virou meu inimigo, meu
algoz. E a ausência de adjetivo feminino é totalmente proposital.
Quando
seu algoz entra na sua cabeça a ruína é inevitável. A princípio o que vai ser
martirizado é a sua alma. Você não consegue ir pra cama sem antes dar de cara
com aquele que um dia mutilou seu coração. Ao acordar, ele também vai estar lá,
pronto pra te dar um bom dia, com aquela cara de boazinha, como se toda
projeção de imagens implodisse dentro de mim. Nesses baques a sua alma vai sendo
sutilmente truncada, criando dentro da sua mente um forte laço com aquele que
você desejaria expulsar pra fora do planeta. O malfeitor que desejo engaiolá-lo
e jogar no mar do esquecimento, na verdade, é enjaulado dentro da minha cabeça.
A insanidade começa a traspassar o corpo.
Lá
estava eu mais uma vez, paralisado em minhas lucubrações não conseguindo
digitar uma só letra. Arquitetava nosso encontro. Minha imaginação extrapolava
quando bolava algum tipo de agressão verbal ou até mesmo física. Queria
machucar, tanto a alma quanto o corpo. Nessas alturas já estava ciente que o
meu carrasco estava sendo eu mesmo — é o desejo por vingança; é o desejo.
Precisava
vê-la, olhar nos seus olhos. Tinha que enfrentar tudo isso e me deparar com
essa realidade fugaz e sem sentido. Foi então que percebi que estava sendo
covarde e que alguma atitude tinha que ser vestida de ações. A guerra teria que
começar, e eu só poderia vencer levantando um tipo de bandeira, aquela que só
os fortes levantam no furor de uma batalha: o perdão é o estandarte dos fortes.
Vingança, perdão; o desejo nem sempre é traduzível.
Naquela
tarde o sol estava bem visível. Decidi me recompor, canalizando assim meus atos
pra outro rumo. Eu tinha que vê-la, e vomitar até a última vírgula do que eu
tinha pra dizer.
O
tênis ainda estava úmido, mas não me importei. Vesti aquela velha camisa
branca, pois caía bem no meu corpo, e não me impliquei muito com a calça, pois
já estava usando ela a semana inteira mesmo. Qualquer estratégia era
dispensável, pois eu tinha as palavras e o olhar. Era tudo que eu precisava.
Cheguei
ao local onde ela trabalhava disfarçando terminantemente minha ansiedade e
nervosismo, deixando subentendido no meu olhar uma ousadia e confiança que por
dentro, minha alma negava contraditoriamente. Logo que entrei no ambiente — o
qual nunca me chamou a atenção — foi perceptível como a auxiliar de escritório
que ali trabalhava a mais de dez anos ficou admirada. Ela me conhecia e tinha
consciência de que ali era o único lugar que jamais me veria.
—
Boa tarde — cumprimentei de enceto.
—
Boa tarde — respondeu ela com um sorriso surpreso, tentando disfarçar pegando
alguns papéis na mesa, o qual eu julgava ser algum tipo de documento. — Você
andou sumido hein rapaz!
—
Pois é — respondi com um leve sorriso no canto da boca, colocando o celular no
bolso esquerdo da calça, indo em direção à porta que dava acesso a sala dela.
Ao
entrar senti minha mão direita tremula e a sensação que tive era que agulhas
saiam do meu estomago. Discretamente ajustei os óculos para que ficasse numa
posição mais confortável no meu rosto, enquanto ela estava sentada, debruçada
em sua mesa, certamente lendo algo insignificante na internet. Sua expressão
ficou visivelmente sobressaltada ao ver que eu entrava pela porta. Os olhares
constrangidamente se fixaram fazendo-me perceber a dilatação de suas pupilas.
Então inferi minhas primeiras palavras:
—
Boa atarde!
—
Oi — respondeu ela, totalmente confusa em relação a minha presença naquele
lugar, o qual ela julgava eu ser a última pessoa a pisar os pés ali. — Que
surpresa!
—
Preciso conversar com você. Está muito ocupada? — apoiei minha mão no encosto
da cadeira empurrando-a para o lado, como se não quisesse sentar.
—
Um pouco, mas não é algo que impede da gente conversar — disse ela com um olhar
circunspecto e duvidoso — quer que seja aqui mesmo?
—
Melhor irmos para outra sala, ficaremos mais à vontade.
—
Também acho — ela se levantou vagarosamente indo em direção à porta que dava
acesso ao galpão — vem, aqui tem algumas cadeiras.
O
local era escuro e abafado, mas era o lugar perfeito. Sentamos, e tudo que
tinha ensaiado pra falar havia sumido da minha mente.
—
Certo — comecei meu discurso tentando não desviar o olhar pra nenhum outro
canto, — não sei se vai entender, mas eu tinha que vir aqui. Não consigo parar
de pensar em você — o olhar dela se tornou penetrante depois dessa frase. —
Talvez seja por falta de perdão, não sei, mas a realidade é que sua imagem se
imortalizou dentro de mim, e por mais que eu tente não consigo te esquecer. Fiz
tudo ao meu alcance pra apagar você da minha vida, uma investida que sempre
fracassei. Vir aqui te ver foi a ultima opção que me restou.
Seus
olhos começaram a ficar vermelhos, levantando assim as sobrancelhas,
sinceramente embaraçada, porque não podia imaginar a conversa tomando aquela direção.
—
Os pensamentos vêm, não consigo pará-los — continuei depois de uma pausa, — te
imagino praticamente em todas as situações do meu dia. Saber que você está
perto me deixa apreensivo, inquieto sabe. Se você mudasse e, de preferência
para outro planeta, acho que a situação aliviaria. Tinha você como minha
conselheira, e se estou aqui é porque não tenho ninguém com que eu posso
conversar. Sua opinião vale muito pra mim, e você sabe disso, e é por isso que
as coisas muitas vezes só tem sentido se você estiver vendo, advertindo,
observando.
Lágrimas
começaram a declinar-se no seu rosto, mas sua face permanecia serena. Percebi
que ela queria ouvir mais, quem sabe para poder assimilar bem tudo aquilo.
—
Te imagino passando por mim na rua, dentro dos carros, tropeçando em você no
supermercado, na lanchonete. Penso em você depois de ter vestido algo novo ou
ter feito a barba, e parece que todos os elogios e críticas não tem sentido
algum se a sua opinião não estiver incluída. E isso é algo obcessivamente sem
sentido, ora, você mutilou minha alma em todas as esferas, e as lesões ainda
estão abertas. — Ela abaixou a cabeça colocando o rosto sobre as mãos e os
cotovelos sobre as pernas. Talvez para esconder uma expressão mais aguda do seu
choro. Até então não tinha saído uma palavra da sua boca.
Olhei
pra cima pra ter uma respiração mais confortável, sem saber instintivamente
como desfechar essa conversa. Então resolvi falar aquela frase que fui
decretado a inferir.
—
Olha — reiniciei o monólogo — vim aqui te dizer algo, mesmo que não esteja
tendo esse sentimento em sua totalidade, vim aqui pelo menos verbalizar isso.
Talvez me traga algum alívio.
—
Espera — disse ela quebrando totalmente aquele solilóquio existencial — quero
dizer algo.
Ela
levantou o rosto que a essas alturas já estava encharcado, movendo o seu braço
compassadamente colocando sua mão em minha perna. Fixou seus olhos inteiramente
nos meus, o que me fez imaginar que a conversa poderia tomar outra rumo.
Então
o seu rosto veio em minha direção bem devagar. E disse bem baixinho, aquilo que
eu sempre soube.
©2011 Lindiberg de Oliveira
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