A religião de Jesus

sábado, 6 de outubro de 2012 Postado por Lindiberg de Oliveira

Devemos reaprender a compreender o
significado da solidariedade humana:
Deus quer seres humanos, não fantasmas que
evitam o mundo. Ele fez a terra nossa mãe.
Se você tem anseio por Deus abrace o mundo;
se quer encontrar a eternidade, sirva o momento presente.
Dietrich Bonhoeffer

Nem pra todo mundo a existência de Deus é um problema. Para uns, Deus apenas é. Para outros, pouca diferença faz. Há aqueles que insistem em descortinar alguma evidência de sua existência, e tem também aqueles ateus ressentidos que dizem que Deus deveria ser menos tímido, se revelando assim de forma mais objetiva – caso existisse é claro. Não quero aqui entrar no mérito de provar a existência de Deus, mas então somente de mostrar algumas concepções históricas de como algumas religiões concebem ou discernem a sua existência. Especificamente o modo como ele se revela ao homem.

Cada qual com seu Deus

Partindo do pensamento de Joseph Campbel (1987), o mundo é dividido em dois grandes grupos: oriental e ocidental. Cada grupo tem suas religiões distintas, mas com essências intrínsecas. Ora, para as religiões monoteístas ocidentais (que nasceram curiosamente no deserto do oriente médio) Deus é um ser que fez tudo a partir do nada. Nesse caso Deus é um ser transcendente que é separado da sua criação, havendo assim uma tremenda distância entre Deus e o universo. Deus, nesse caso, é a grande realidade individual espiritual, sendo assim distinta e separada da sua criação, existindo antes acima do que dentro do mundo. Em contrapartida, o pensamento oriental segue num caminho oposto. As religiões orientais não fazem muita distinção entre Deus e o universo; na verdade o universo e tudo que nele há podem ser encarados como o próprio Deus – Deus é tudo e tudo é Deus –, levando, não raro, a um panteísmo nivelador.

A divisão desses pensamentos gera uma estrutura religiosa, psicológica, filosófica, politica e éticas totalmente distintas. Para as religiões monoteístas ocidentais (judaísmo, cristianismo e islamismo são as principais) Deus não se confunde com sua criação, mas ao mesmo tempo se aproxima parcialmente para uma relação de submissão, onde é estabelecido um conjunto de regras e ritos, em que o homem assume em face desse Deus longínquo e soberano uma atitude de temor e tremor e só obedece por meio do castigo e pela esperança do prêmio.

Para as religiões orientais Deus está essencialmente inserido em tudo, precisando apenas estabelecer uma relação imediata com a divindade, desenvolvendo assim um laço de identidade – Deus é tudo e tudo é Deus. O problema aqui é que Deus deixa de ser Deus e vira deuses, logo, seguindo esse raciocínio, eu também sou Deus. Esse é o alvo primário das religiões orientais. Nesse caso não é preciso nenhuma mediação entre Deus e o homem, pois os dois se fundem ao ponto de serem confundidos. A partir daí vemos todos os princípios hierárquicos religiosos ocidentais serem invalidados, o que é uma coisa boa na concepção de muitos filósofos.

Deus nos deu asas; as religiões inventaram as gaiolas

O principal problema em relação às religiões ocidentais – demonstradas tanto por Joseph Campbell quanto por Huberto Rohden (1981) – é que elas ainda não conseguem sobreviverem sem as instituições. O sujeito não consegue ter um relacionamento direto com Deus, tendo a instituição, como uma mediadora entre Deus e o homem. O ponto de encontro será sempre a instituição; e com instituição eu quero dizer tanto o templo como é tradicionalmente conhecido quanto a Bíblia, a sinagoga, as igrejas, as mesquitas, os mandamentos, o confessionário, ou até mesmo a oração voltada pra Meca. São essas as instituições que se interpõe inexoravelmente entre Deus e o homem.

Como já tenho falado e dito aqui neste blog incessantemente, Jesus se contrapõe de forma veemente em relação a essa forma institucionalizada de buscar a Deus. Sim, com a plenitude dos tempos (que começa no momento em que Cristo pisa nessa terra), nasce a morte da instituição. Mas, talvez eu esteja me adiantando caro leitor. Como disse Jack, o estripador, “vamos por parte”.

Jesus não foi o primeiro a vir com esse julgamento contra a instituição. Todos os profetas e messias traziam embutidos em seus ministérios esse conceito esmagador em relação à instituição, e a Bíblia hebraica está repleto dessa mensagem. Ora, Deus queria uma cidade sem templo, e por esse motivo pediu para que construísse um tabernáculo móvel, pois o Senhor queria que o seu povo, fosse um povo peregrino. A presença de Deus acompanharia a presença do povo. Essa era a ideia do tabernáculo. Um Deus móvel para um povo móvel. Hoje entendemos que o tabernáculo era um reflexo do próprio Cristo (Ap 21.22). O povo hebreu atravessa o deserto e entra na terra prometida. As coisas começam a fluir de acordo com a vontade de Deus, o povo é livre e entre eles não há templo, nem rei, nem castelo, somente o povo e Deus. Mas eles são obstinados. O desejo pelo controle e segurança faz com que seja estabelecido um rei, e este, tem a geniosa ideia de constituir um templo. Rei e templo são a materialização pelo desejo de controle, ordem e domínio. Mas, observe que a ideia do templo foi um desejo do rei, e a ideia de um rei foi uma reação obstinada do povo, considerada pelo profeta uma rejeição a Deus (1Sm 10.19). Deus oferece um tabernáculo móvel, e o povo escolhe a imobilidade de um edifício de concreto e a descomunhão dos grandes ajuntamentos que imprimem em nossos corações o orgulho e as dissensões.

A Bíblia mostra que Deus não tem receio em desfazer e derrubar aquilo que ele cria e começar tudo do zero. Foi assim no Éden, o mesmo aconteceu com a raça humana no dilúvio, e não foi diferente com Israel e Judá. Surge um momento na história em que o Criador aparece para destruir o templo e o reino[1]. Gaiolas são construídas para se possuir aquilo que, de outra forma voaria livre, para longe. Deus não barganha sua liberdade, e tudo é lançado poeira abaixo, não uma, mas duas vezes. E Deus não levanta sequer uma palha para impedir, pois o seu compromisso não é com templo, muito menos com sua conservação. Quando Jesus é surpreendido pelos apóstolos, querendo-lhe mostrar as maravilhas do templo, ele imprevisivelmente lança juízo dizendo: “não ficará aqui pedra sobre pedra” (Mt 24.1-2). E mais uma vez tchau templo.

Uma das intenções do Nazareno quando pisou nessa terra, era desmantelar essa marca deixada pelas religiões ocidentais, que era a institucionalização de Deus – o cristianismo e o islamismo não tinham nascido ainda, mas, mesmo assim, a noção de templo era concebida antes mesmo de Israel existir como nação[2]. O que os religiosos viam como um ponto de encontro para um relacionamento com Deus, Jesus via um salto para a legalidade. E ele demonstra isso através de histórias como aquela do bom samaritano, em que os que eram ligados à instituição (o levita e o sacerdote), foram justamente os que negaram caridade ao necessitado. Jesus deixa claro que Deus é o Espírito Universal, e como tal, não está condicionado a um espaço geográfico; “nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai”, pois, para um verdadeiro relacionamento com Deus requer somente um ato de devoção “em espirito e em verdade”. Desse modo, Jesus começa a demolir todos os trâmites da religião institucional, mostrando que Deus não cabe dentro de definições dogmáticas. Aliás, Deus não cabe dentro de definição nenhuma, ele é o Indefinível, porque “definir” quer dizer pôr fines, limites; definir o infinito é o mesmo que finitizá-lo; o mesmo que relativizar o absoluto; nas palavras de Rohden, o mesmo que individualizar o universal[3] – processos esses causados pela instituição e intrinsecamente absurdos e contraditórios.

Um novo modo de ver Deus

Jesus inaugura um novo modo de se relacionar com Deus fazendo a instituição torna-se algo totalmente arcaico e rudimentar. Infelizmente não demos muito atenção às palavras do Cristo; pergunte a qualquer cristão onde encontrar Deus e com certeza você receberá um sonoro convite para ir a uma “igreja”. Sim, essa é a respostas dos religiosos: Deus é encontrado nos templos. Quão enganado nós estamos! Enganados, tanto na pergunta quanto na generalizada resposta. Nesse caso, para obtermos a verdadeira resposta teríamos que fazer a pergunta certa também. Teríamos que perguntar onde Deus quer ser encontrado. A resposta que o Evangelho nos oferece desconstrói toda uma tradição. Ora, o Novo Testamento nos mostra que o Filho do Homem é um Deus que assume temporariamente a face do Outro, e é no próximo que ele quer ser encontrado: “Digo-lhes a verdade: o que vocês fizeram a alguns dos meus menores irmãos, a mim o fizeram”. O tabernáculo móvel continua existindo: e é o sedento, o faminto, o nu, o estrangeiro, o enfermo, o encarcerado, etc. Deus misteriosamente resolve se revelar tomando o Outro como máscara. E é no relacionamento que temos com o próximo que nós se relacionamos também com Deus: “o Reino de Deus está no próximo”. Para as religiões orientais tudo toma a forma de Deus, inclusive o próprio sujeito, ou seja, todos nós somos Deus. Para o Mestre de Nazaré, Deus é os outros.

A unidade de Jesus

Apesar dessa pequena divergência, Jesus ao mesmo tempo faz uma ligação singular com o pensamento oriental.

Segundo o panteísmo pregado pelas religiões orientais, Deus é identificado com a essência das coisas – o que está certo. O errado está em identificar Deus com a existências das coisas – é nesse ponto em que o Criador é confundido com a criatura. Por outro lado, as teologias ocidentais, para evitar o perigo do panteísmo, afirma a transcendência de Deus, e nega a sua imanência, estabelecendo separação entre Deus e o mundo. O Deus revelado no Novo Testamento é um Deus transcendente – pois não se confunde com sua criatura –, e também imanente – pois a sua essência, está inserida na criação. Jesus, de forma pessoal e puramente literal, revela uma total identidade com o Criador: “eu e o Pai somos um”. E isso ganha uma dimensão literal em nossas vidas quanto ao fato de sermos chamados “filhos de Deus”.

O Filho do Homem dá testemunho de um Deus, e afirma tanto a sua transcendência quanto a sua imanência no mundo, proclamando distinção entre causa e efeito, mas não separação entre eles. A onipresença de Deus revela que ele não só está em todo lugar, mas que também está em todas as coisas: Deus está em tudo, mas ele não é tudo. Huberto Rohden sistematiza esse pensamento dizendo que Deus fez tudo a partir de si mesmo, e que todo o universo contém partículas de Deus: sua essência. Por existir essa essência de Deus no homem, Jesus escandaliza os fariseus ratificando as mensagens dos profetas hebreus quando disse: “Vós sois deuses” (Jo 10.34). Para Rohden, as religiões ocidentais cometeram um grande erro ao dizer que Deus criou o mundo do nada, isso é metafisicamente inconcebível – nada pode ser criado do vácuo.

Essa ideia não foi escândalo para nenhum escritor do Novo Testamento. Muito pelo contrário, isso soou como poesia tanto na boca quanto na ponta de suas penas: “Pois nele vivemos, nos movemos e existimos”, afirmou o apóstolo categoricamente (At 17.28). No Novo Testamento, não há essa distância que as religiões ocidentais fazem entre Deus e sua criação. Muito pelo contrário: “O Reino de Deus está dentro de vós”. Sendo sabedor dessa boa nova, Paulo não poderia ser mais claro quando disse que “não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”. O apóstolo Pedro se aproxima ainda mais das palavras de Cristo quando afirma que “somos participantes da natureza divina”. E assim se cria também os primeiros mestres da igreja primitiva: “A alma é cristã (divina) por natureza” (Tertuliano), cristã, ou divina, em virtude de sua própria natureza íntima. “Deus estava sempre presente em mim, eu que estava ausente dele” (Agostinho). Infelizmente percebemos que essas ideias não foram levadas a sério. Dizer ao homem que ele é um ser essencialmente divino, é o mesmo que tornar as autoridades eclesiásticas supérfluas e diminuir-lhe grandemente o prestigio e suas influências. Os apóstolos mal esfriaram em seus túmulos e o cristianismo já começara a impor formações hierárquicas no seio eclesiástico. Assim como hoje, disciplina era a grande palavra da época, a regra de ouro, e não liberdade.

A “disciplina”, isto é, autoridade de cima e obediência de baixo, que nos submente as religiões, não conseguem sobreviver à constrangedora liberdade que Cristo nos presenteia. Deus está em nós. Não precisamos das instituições, de suas hierarquias, pois o que está em nós, também é nosso Pai.

©2012 Lindiberg de Oliveira



[1]Por várias vezes observamos Deus usar nações estrangeiras como açoite para repreender Israel. Devemos entender esse processo de derrubar, desfazer e recomeçar como um ato de amor de Deus em relação a sua criatura.
[2] Levando isso em conta, é bem provável que assim como o povo pediu um rei, imitando os outros povos, é possível que o mesmo tenha acontecido em relação ao templo, pois Deus rejeita esse projeto de imediato.
[3] Essa tentativa de querer individualizar Deus é muito antiga. A resposta de Deus ainda ecoa incessantemente no universo: “Eu Sou o que Sou” (Ex 3.14)