A adúltera de Deus
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Luiz Felipe Pondé
O Deus de Israel sempre amou as adúlteras. Jesus
também dispensou cuidados especiais para com elas, e para com as prostitutas,
os ladrões e os desgraçados
de todos os tipos. Deus parece não resistir à sinceridade do
pecador, assim como a filosofia parece amar a verdade do melancólico.
Na Bíblia hebraica, Raquel, a segunda esposa de
Jacó (depois chamado de Israel), por muitos anos uma mulher estéril e idólatra
por raiva de Deus, enterrada fora do "cemitério da família" por ter
sido uma vergonha para esta mesma família, será escolhida por Deus como
consoladora do povo eleito no sofrimento
Raquel é a "mater misericordiae" do
judaísmo. Quando Israel sofre, é o nome dela que deve ser lembrado. Deus ama as
infelizes e as elege como suas conselheiras. Qual o segredo da infelicidade?
Não se trata de brincadeiras teológicas
"progressistas" que erram achando que ninguém é pecador. A pastoral
de hoje, vide as igrejas que crescem por toda parte (o judaísmo não escapa
tampouco desse vício), cada vez mais se assemelha a grandes workshops de
autoajuda ou treinamentos motivacionais. Nada menos cristão do que um Jesus
consultor de sucesso. Ninguém quer ser pecador, só santo.
Mas aí reside o erro para com a teologia cristã
mais sofisticada: nela, o grande pecador é o mais próximo do santo. A beleza da
antropologia do cristianismo está neste sofisticado e denso vínculo
dramatúrgico: quando o corpo se
põe de joelhos, pelo peso do pecado, o espírito se ergue. Não se trata de
dolorismo, mas, sim, da mais fina psicologia moral.
A santidade reside mais na alma do pecador do que
na autoestima do "santinho".
Aliás, devo dizer que minha crítica à religião é
diametralmente oposta àquela de tradição epicurista ou marxista. Esta, grosso
modo, critica a religião porque ela faz do homem um alienado covarde, e que se
vende a Deus para ser um alienado feliz. Eu me alinho mais ao pensamento do
teólogo Karl Barth (século 20), para quem a religião torna tudo um mistério
maior e traz à tona um sofrimento maior, mas que, por isso mesmo, amplia a
consciência de nossa condição humana. Sofro, por isso penso, e logo, existo.
Recuso as religiões institucionais não porque elas
fazem do homem um medroso, alienando-o de sua felicidade e autonomia (como
creem Epicuro e Marx), mas sim porque as religiões fazem do homem um feliz,
alienando-o de sua própria agonia. Quando a religião vira marketing, é melhor
caminhar só pelo vale das sombras.
Revi recentemente o maravilhoso "Fim de
Caso" (filme de 1999, dirigido por Neil Jordan), com a deusa Julianne
Moore e Ralph Fiennes. O filme é uma adaptação do romance de Graham Greene e
narra a "sua conversão". Trata-se de um fino tratado de teologia, melhor
do que grande parte dos livros que afirmam sê-lo.
No filme, a compreensão da íntima relação entre
pecado e graça é avassaladora. Nada mais forte do que a graça para iluminar a
agonia do pecador para si mesmo: o santo não é um santinho.
A personagem de Julianne Moore é uma adúltera, que
ao longo do filme apresentará traços claros de santidade, chegando a realizar
um milagre. A adúltera, infiel ao seu marido, destruidora da fé no casamento e
no amor que organiza a vida e a sociedade, o tipo mais vil de mulher, é aquela
que mais fundo toca Deus em sua paixão pela agonia humana. No cristianismo,
Deus leva a agonia humana tão a sério que resolveu Ele mesmo passar por ela, na
figura da Paixão de Cristo.
Um musical a estrear, baseado na obra de Victor
Hugo (século 19), "Os Miseráveis", com Hugh Jackman no papel de Jean
Valjean, fugitivo da cadeia, e Russell Crowe no papel de seu perseguidor
implacável Jabert, traz uma das maiores cenas da teologia cristã já
representada na arte. Jean Valjean, após ter roubado os castiçais da casa de um
padre, e ser pego pela polícia, é perdoado pelo padre que confirma para a
polícia a mentira contada por Valjean: "Sim, eu dei os castiçais para
ele".
Este ato transforma Valjean. O encontro entre a
misericórdia e o pecador é uma das maiores afirmações do sentido da vida.
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