Melquisedeque e a universalidade da graça

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013 Postado por Lindiberg de Oliveira
A qual temos por âncora da alma, segura e firme e que penetra além do véu, onde Jesus, como precursor, entrou por nós, tendo-se tornado sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.
Hebreus 6.19-20

O escritor aos hebreus inicia o capitulo sete nos colocando diante de dois fenômenos a qual faz parte da mesma realidade em Cristo. O primeiro, ganha visibilidade histórica, linear, genealógica, mensurável, com nomes, geografias e realidades palpáveis e tangíveis; que é o testemunho de fé que Deus deu a Abraão. O segundo, temos a manifestação da mesma fé, só que numa dimensão espiritual, sem genealogia, sem geografia, sem princípio de dias e fim de existência, em um personagem chamado Melquisedeque, o qual é citado apenas duas vezes no Antigo Testamento. Nesta discursão, o autor mostra que o sacerdócio levítico, muito conhecido aos leitores judeus, foi substituído por uma nova ordem de sacerdotes, que foram prefigurados e caracterizados por Melquisedeque. Enfim, duas ordens nos são apresentada, e uma não anula a outra, pelo contrário, se complementam. A primeira é uma ordem histórica, que nasce em Abraão e de forma linear passa por seus descendentes até chegar a Davi, dando um salto histórico culminando em Jesus. E é por causa dessa ordem mensurável que podemos entender e sistematizar a nossa fé.

Se por um lado Jesus é Rei genealogicamente segundo a linhagem de Judá, que tem seu princípio em Abraão, por outro lado ele não herda seu sacerdócio da linhagem de Levi – e nem poderia[1]. Jesus é sacerdote sobre a ordem de Melquisedeque (rei de justiça). Um ser misterioso, que não se explica, que não tem introduções, e que o pai da fé o reconhece, sem titubeio, como sacerdote do Deus Altíssimo. Em Melquisedeque temos uma fé transcendente, inenarrável, não-histórica, pois, “sem pai, sem mãe, sem genealogia, é feito semelhante o Filho de Deus”. Entenda bem caro leitor, se Jesus fosse sacerdote segundo uma ordem histórica, só haveria salvação nos limites e nas dimensões históricas mensuráveis. É por causa da ordem de Melquisedeque, que é mistério total, que não há no sacerdócio de Cristo confinamento geográfico, histórico, político e nem religiosos.

É por causa de Melquisedeque que a fé de Abraão deixa de ser uma fé étnica e genealógica para ser uma fé transcendente. A fé de Abraão é uma fé que se curva diante do mistério de Melquisedeque. Sendo assim, vemos o Reino de Deus ser invadido por pessoas improváveis, que não eram da linhagem de Abraão, como a prostituta Raabe, como Naamã, o sírio, como o arrogante Nabucodonosor, ou mesmo Ciro, a quem Deus chama de meu ungido.

O convite da graça e seu escândalo universal
O interessante é que observamos essa evolução não só no Antigo Testamento, mas a vemos também no Novo Testamento. O primeiro texto produzido sobre a vida de Jesus foi o evangelho de Marcos, que termina seu documento extremamente fechado e abrupto. Marcos conclui com as palavras de Jesus: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer e não for batizado será condenado” (Mc 16:15-16). Pronto. Jesus é sucinto e limitado, deixando a entender certo tipo de exclusivismo sem nenhuma explicação sobejante.

Partindo para o evangelho de Mateus, que pega Marcos como esboço, incorporando os ensinos e uma quantidade enorme de parábolas de Jesus, notamos que ele não termina o seu texto com a mesma dramatização de Marcos. Mateus não carrega o peso da repetição judaica e termina o seu documento com as seguintes palavras: “Ide, portando, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28:29-20). Portanto, diferente de Marcos, Mateus termina abrindo para novas perspectivas, quebrando as limitações. A questão aqui já não é mais “batizar ou não batizar” e a salvação não entra em jogo. Agora é ensinar, para que se tornem discípulos; e isso tem a ver com formação de consciência e educação. Seguindo para o evangelho de Lucas, que é anterior ao de João, percebemos que ele fica extremamente mais universal já no seu início, pois Marcos não nos apresenta uma genealogia e Mateus expõe uma de Abraão até Jesus – ainda limitada -, mas Lucas exibe uma genealogia partindo de Jesus e fazendo uma viagem até Adão, universalizando a perspectiva de tudo que ele irá nos dizer.

Lucas, não se esqueçam, foi o historiador de Paulo. Logo, o seu texto é carregado sistematicamente dos entendimentos espirituais que Paulo adquiriu e que Lucas absorveu. E isso não era uma invenção teológica mas fatos, pois Lucas faz questão de dizer que fez “acurada investigação desde a sua origem para vos oferecer tudo com exatidão” (Lc 1:3). Uma das frases mais lindas contidas em seu evangelho é quando se refere a Jesus como “um amigo de publicanos e pecadores” (Lc 7:34). No entanto, em Lucas, a universalidade da graça atinge sua perfeição quando narra que: “muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul e tomarão lugares à mesa no Reino de Deus, com Abraão, Isaque e Jacó, mas vós”, os que se acham dignos e praticantes da verdadeira religião, “serão lançados fora” (Lc13:27-29). Quando Jesus fala desse povo, que tomarão lugares à mesa, fala de pessoas antes de Abraão, Isaque e Jacó, pois o texto é atemporal, e quebra qualquer barreira étnica.

Podemos ver a partir daí a revelação sofrendo algum tipo de progressão. Sim, até a revelação passa por um tipo de progressividade. Só assim a mente humana é capaz de aprender. Isso era Deus nos dando o que é possível compreender àquela época e também nos dias de hoje. Por isso João já não perde tempo com uma genealogia. Ele já chega assumindo a soberania do Verbo colocando-o antes e acima de tudo: de Abraão, de Adão, e até mesmo antes da primeira onda eletromagnética. É em João que Jesus é apresentado com as categorias universalmente melquesedequianas: sem princípio de dias e fim de existência, porque “no princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus”. E ainda no primeiro capitulo se diz que Jesus “era a verdadeira luz, que vindo ao mundo ilumina todo homem”. Ora, isso está acima de qualquer possibilidade humana, de qualquer condicionamento missionário ou institucional. E quando diz “todo homem”, mais uma vez refere-se às pessoas, mesmo aquelas que viveram antes de Abraão, pois, Deus não começou a ser o Deus da graça depois de Davi ou somente depois do Jesus histórico. Ele é o Deus da graça desde sempre, e sua misericórdia sempre se aplicou a todos os homens e em todas as épocas. Ninguém jamais foi salvo a não ser pela graça. A crucificação, que aconteceu depois de Abraaão e antes de nossos tempos, é apenas um símbolo, uma maquete, um presépio que manifestou na História a Cruz eterna, que teve início antes de qualquer História. O Cordeiro foi imolado antes dos tempos eternos; ou seja, "antes da fundação do mundo" já havia Cruz (1Pe 1.18-20).

O apóstolo João, em sua evolução na revelação divina expressa em sua primeira carta resumindo a coisa toda em um elemento muito simples: “quem ama conhece a Deus” (1João 4.7). Ou seja, não diz que só os que conhecem a Deus amam – é comum vermos ajuntamentos de gente que diz que conhece a Deus e não amam. O caminho que João faz é inverso; aquele que ama já tem o Espírito sendo germinado dentro de si.

E na medida em que a progressão da revelação caminha, as coisas vão ficando mais claras, e começamos a perceber que o Novo Testamento começa a mergulhar na transcendência da ordem de Melquisedeque. As declarações vão ficando cada vez mais intensas e universais, como aquela de Pedro na casa de Cornélio: “Bem sei que Deus não faz acepção de pessoas, pelo contrário, todo homem que o tema, em qualquer lugar da terra, o é aceitável” (At 10.34-35). E Paulo, em Romanos 2, complementa essa ideia dizendo que muitos que não ouviram o Evangelho tem o conhecimento da natureza de Deus e “procedem, por natureza, de conformidade com a lei, mostrando assim, a norma da lei gravada em seu coração”. Ora, é óbvio que essa é a deliberação da Luz que ilumina todos os homens. Escrevendo a Tito, Paulo diz que a graça vem ao mundo impetuosamente elegante, “trazendo salvação a todos os homens” (Tt 2:11). E apesar de todos nós estarmos debaixo do pecado, o sacrifício de Cristo não se reduz a algo tão ridículo que possa ser limitado a atingir somente aqueles que tiveram contato com uma religião ou até mesmo a Bíblia; ao contrário, ele é a “propiciação para os nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro” (1Jo 2.2). O alvo da graça é o mundo inteiro. E não me entenda mal, isso não quer dizer que todos serão salvos. De forma alguma. Isso quer dizer que o Evangelho não está preso aos pilares institucionais ou a alguma carteirinha de membro de clube religioso. À sombra do manto de Melquisedeque, a universalidade da graça não tem fronteiras.

A Luz que ilumina todos os homens no Antigo Testamento
O maior escândalo de todos é que a universalização da graça não começou aparecer somente no Novo Testamento. O Antigo Testamento, apesar de desempenhar outras categorias, nos apresenta considerações belíssimas. Embora Israel seja o povo eleito, todas as nações são abraçadas pelo amor de Deus e tem a possibilidade de sentir o seu amor, porque “por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo” (Sl 19:4). É bem verdade que Israel foi inundado pela  revelação de Deus de forma mais perfeita que os outros povos antigos – Israel é o povo eleito –, mas nem por isso os israelitas é o povo mais queridinho de Deus. Ao contrário, Deus acaba com a arrogância de Israel, mostrando que sua exclusividade é apenas relativa, com declarações veementes pela boca de seus profetas: “Vocês, israelitas, não são pra mim melhores que os etíopes”; e completa esfregando na cara atrevida de Israel que eles não foram os únicos privilegiados com um êxodo patrocinado pelo Senhor: “Eu tirei Israel do Egito, os filisteus de Caftor e os arameus de Quir” (Am 9.7). Portanto, a revelação divina é emanada e reconhecida graciosamente no mundo todo. E é por isso que Deus nos revela poeticamente que “desde o nascente do sol até o poente, é grande meu nome entre as nações; e em todo lugar é queimado incenso e trazido ofertas puras, porque o meu nome é grande entre as nações" (Ml 1.11). Se essa afirmação não estivesse na Bíblia, seria grosseiramente herética, um insulto à sensibilidade do religioso dogmático que sempre encontra na letra o gatilho para atirar no inferno todos aqueles que não comungam de sua "visão". Isso mostra que o pedigree de Abraão nunca foi uma garantia de uma aceitação divina. “Em todo lugar é trazido ofertas puras, porque o meu nome é grande entre as nações”. O mundo todo pertence ao Senhor, em qualquer época e em qualquer lugar.

Essa declaração encontrada em Malaquias nos faz lembrar do episódio em que o apóstolo Paulo prega em Atenas no Areópago, a respeito do "Deus desconhecido". O altar levantado ao Deus desconhecido não era um conceito abstrato para os gregos. Tinha haver com uma história. Aproximadamente 600 a. C., a região de Atenas tinha sido alvo de uma grande praga que ceifando centenas de vidas todos os dias; as oferendas e sacrifícios tinham sido dedicados a todos os deuses conhecidos, mas nada acontecia. Em meio ao desespero de se verem abandonado por todos os deuses, o povo decide sacrificar a algum Deus que talvez eles não conhecessem. Então um altar foi levantado ao "Deus desconhecido", e para espanto de todos a praga cessou. Paulo, portanto, depara-se com o altar, e consequentemente aquela história não era alheia aos seus ouvidos. O apóstolo delineia seu discurso compreendendo que em todo lugar é trazido ofertas puras, porque o nome do Senhor é grande entre as nações. Desse modo, diz Paulo: “Pois, andando pela cidade, observei cuidadosamente seus objetos de culto e encontrei um altar com essa inscrição: AO DEUS DESCONHECIDO. Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio” (At 17.23). É estarrecedor o fato de muitos adorarem a Deus sem o conhecer. A nós, claro, cabe o prazeroso trabalho de anunciar e celebrar o seu nome.

Quero deixar bem claro que não sou uns dos melhores dos discípulos de Jesus. Ultimamente tenho ficado cara a cara com Paulo pra ver quem é o principal dos pecadores e, portanto, é muito provável que muitas prostitutas e gente que não presta, entre no Reino primeiro do que eu.

Ultimamente tenho andado por aí e me relacionando com várias pessoas, e não é difícil perceber que muitas delas são melhores que os nossos pastores, presbíteros e diáconos; melhores que os nossos profetas e pregadores; mais humanos do que os melhores entre nós. Gente que nunca ouviu falar de Jesus, mas que emana de si a graça porque foi visitado pelo amor do Eterno; nunca ouviu falar do Evangelho, mas é uma boa nova aonde chega. E com isso fica perceptivelmente mais visível o contraste com a arrogância do povo evangélico que diz “nós somos e eles não”. Conhecemos o Deus verdade nominalmente, temos acesso à revelação mais perfeita, mas resolvemos petrificá-la em nossos dogmas; seguimos praticando injustiça em nome do livro sagrado jogando pessoas no inferno à sombra de nossa pretensa sabedoria. É exatamente assim que vamos reduzindo o amor de Deus, da forma mais patética possível, a algum tipo de exclusivismo; nos transformamos em progenitores do pior tipo de presunção.

As coisas não são tão complicadas quanto parece. Para o Evangelho, qualquer ser humano que reflita à luz do amor é nosso irmão, porque "quem ama é nascido de Deus", diz João. Ou seja, o endereço de Deus aqui na terra é onde o amor se materializa. É nesta perspectiva que sigo o meu caminho no Caminho, e encontro a minha Igreja aonde eu encontro bondade, amor e graça.

©2013 Lindiberg de Oliveira

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[1] Se dependesse de Abraão, Jesus não teria condições nenhuma de ser sacerdote, porque da tribo de Judá saíram vários reis, mas nenhum sacerdote. Nesse caso, quando Jesus se apresenta como o Ungido, o Messias de Deus, faz total sentido em se tratando de sua linhagem judaica.