Fome de Beleza
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
“Deus fez
tudo apropriado a seu tempo. Também pôs no coração do homem o anseio pela
eternidade”.
Eclesiastes 3:11.
Dostoiévski,
após ler o verso bíblico acima, declara inofensivamente que o homem tem em si um buraco do
tamanho de Deus. Esse vazio é uma fome que não pode ser preenchido e muito
menos saciado, porque vai além da mera satisfação humana; se trata de um vazio numa
dimensão puramente existencial. De modo igualmente bem-intencionado, o poeta cubano Roberto Retamar escreveu
que “o ser humano é habitado por dois tipos de fome, a fome de pão – que é
saciável – e a fome de beleza, que é insaciável”. Ou seja, não somos
governados apenas por instintos básicos como comer e beber. Sentimos o desejo
pela transcendência, o anseio pelo sublime que ultrapassa nossos limites sensoriais; aspiramos pelo intangível, por aquilo que é conquistado pelo impulso do espírito. Essa é a fome de beleza que tem firmes
traços na natureza humana.
O ser humano, em não encontrar sentido no mundo sensível,
sente a necessidade de se elevar. E é justamente na arte – e suas várias
manifestações, como a religião, a música, a pintura, a poesia, a filosofia – que o
homem encontra essa abertura para o transcendente, se libertando de sua
sujeição natural, da finitude entendida como submissão à natureza.
Foi através da arte que conseguimos
retirar o véu para que a beleza ficasse visível e acessível, fazendo algo –
que ninguém havia visto como belo até o momento – se elevar além de um limite
ou de um nível dado. A princípio, as artes não transmitiam recados tão
explícitos e precisos, mas no entanto propunham imagens que de algum modo os homens
se reconheciam, na tragédia, na comédia, na narrativa de superação, na melodia de que desdobrava o espírito, etc. E nisto os artistas se anteciparam aos filósofos na percepção
de levar o homem encontrar total
liberdade para criar. Isso entra em conflito com aquela disposição para o Absoluto, pois num primeiro momento, o homem tenta se adequar ao seu horizonte sensível de pedras, cores, sons, palavras, para
expressar ou transmitir o conhecimento desejado. É neste cenário que surge aquela intuição para Absoluto, mas a efetuação sempre será na exterioridade do mundo objetivo.
Ora, claro que essa ideia não é inédita
– e muito menos original; para os gregos antigos, a beleza era uma visitante de outro mundo
que nos conecta com o mistério máximo da existência. Tomás de Aquino, por exemplo, identificou sutilmente a beleza com Deus e com o Bem. Para Adélia Prado,
“Deus existe porque a beleza existe”. Nada mais lúcido do que essa frase. Isso
por que o artista tem a arrogante capacidade de capturar vislumbres do céu no
cenário terreno. Sua ousada tarefa é levar outras pessoas a apreciarem esses
vislumbres também.
Quando experiênciamos a beleza,
vislumbramos a luz da eternidade brilhando de uma fonte divina, além deste
mundo. Infelizmente são poucos que têm acesso a essa delicada
experiência. A
propaganda, com toda a sua opressão, vem conseguindo sutilmente tomar o lugar
da arte. Nesse processo, o utilitarismo surge montando o seu altar entre nós, e
a cada dia aumenta o número dos que se prostram diante dele. O culto à técnica
nunca foi tão crescente, e nunca fomos submetidos a tantos estímulos como no
dia em que se chama hoje. Mas apesar disso, meu amigo, nada nos impressiona, e por
isso queremos mais. Priorizamos a utilidade, e ela parece fugir das nossas
mãos; e nessa brincadeira, a beleza perde sua função de nos fazer “provar”
essa experiência gratuita e ao mesmo tempo cheia de sentido.
A beleza segue na contra mão do utilitarismo; aliás, as coisas mais importantes da vida – o amor, a paz, a amizade, etc. –
entra em choque com a utilidade, e com a beleza não é diferente. Oscar Wilde diz que apreciamos
essas coisas pelo o que elas são e não pelo uso que podemos fazer delas. O
lance, querido leitor, é que o fato da beleza ser inútil não quer dizer que
ela não seja necessária. Nesse caso, nada é mais útil do que o inútil. Para satisfazermos
nossos desejos por harmonia devemos nos livrar da tirania do “útil”. Ora, não
há utilidade alguma em contemplar um lindo por do sol, ou apreciar um quadro de
Botticelli, ou se debruçar em um livro de poesia. A
contemplação perdeu seu sentido e, em vez disso, pensamos no que as
coisas podem fazer, suas utilidades. Como bem expressou o arquiteto americano Louis Sullivan: “a forma
segue a função”. Daí, tudo que mira nossos olhos é atrelado a pergunta: "para que serve isto?"
Não por acaso a arte sempre encontrou um lugar
privilegiado dentro da Religião. Religião não no sentido vulgar (como conjunto
de crenças anexado a um sistema institucional), mas em seu sentido místico e etimológico (religião, do latim, religare = religar o homem à Deus). Esse
laço entre arte e sentimento religioso sempre existiu em todas as culturas,
pois expressar a beleza, de alguma forma, é sentir Deus em suas dimensões místicas.
O cristianismo, mais do que qualquer outra religião
se utilizou da beleza para acenar aos homens uma esperança que vai além das
tragédias terrenas e conduzi-los às promessas do céu. Hoje, o destemperado
movimento gospel, faz um caminho totalmente inverso, tomando posse da utilidade
para tentar chegar à Deus. A tirania do útil reina no movimento evangélico
institucional, suprimindo toda e qualquer beleza. Não há encanto na literatura
gospel: o que estão no topo dos mais vendidos são títulos como “O segredo do
homem mais rico do mundo”, “Cinco passos para ser bem sucedido”, “10 maneiras
para ser feliz” etc. Uma literatura pobre, que mais parece receitas de bolo. Na
música, o que reina é um descomedido triunfalismo: letras cheias de erros
teológicos que ultrapassam cegamente os limites da heresia. O nome de Deus é
associado a um utilitarismo exagerado, onde só vale a pena busca-lo se me
servir pra alguma coisa – tem que ter um estímulo, um propósito, uma campanha,
etc. A arquitetura medieval, com curvas imponentes e esculturas exuberantes –
onde exaltava qualidades individuais do ser –, foram substituídas por formas
indecorosas onde representam uma coletividade vazia: os templos assemelham-se a
shopping centers, e as configurações internas não são diferentes. A vida frugal
de Jesus é ignorada junto com seus conselhos sobre “apreciar os lírios dos
campos e as aves do céu”. A formidável tarefa de não se preocupar com o dia de
amanhã é insuportável para o homem moderno.
Claro, o sofisticado leitor não deixará de notar
que isto parece ser uma posição genérica sobre o movimento gospel, mas, é assim
que me sinto quando me vejo na ingrata posição de entrar numa livraria gospel e
presenciar mini-arcas, óleos coloridos para ungir, e pilhas de livros e cd’s
com mensagens de autoajuda – livros como Cristianismo
puro e simples ou O evangelho maltrapilho,
são órfãos perdidos nesse meio.
Nesse mundo pós-moderno, a beleza sofre violência de
todos os lados. E hoje ela é vista como algo contrário à tragédia. Mas nem
sempre foi assim; quando a tragédia se depara com gênios, o horror pode virar encanto.
Foi assim entre os gregos e os judeus, encontrando perfeita harmonia nos evangelhos:
a morte de Jesus (tragédia) que se transforma na mais bela esperança já vista
pelo homem. A beleza não tira da tragédia sua
angústia, mas faz com que ela deixe de nos destruir. Assim é a verdadeira obra
de arte, que transforma o feio em belo. Essa é sua adorável missão: a de
despertar perplexidade mesmo em meio a dor, minando a feiura estabelecida.
E onde encontramos a beleza? Na
verdade é ela que nos encontra. Ela brilha sobre nós através das coisas comuns
até as mais complexas. Não podemos fazer nada com ela, salvo contemplar sua esplêndida
pureza. A alma não se cansa de beleza, porque ela é volátil – pois toca a pele
e logo se vai. Uma fome que nos habita, e não pode ser saciada.
©2013 Lindiberg
de Oliveira
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