Escravidão, racismo e outras coisas
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
A escravidão é inegavelmente uma mancha indelével na história
da humanidade. Uma prática desde os primórdios da raça humana, a escravidão
sempre foi um exercício motivado, em algum ponto, por todos os povos como os
hebreus, egípcios, gregos, romanos, vikins; foi uma prática entre os índios da
América Latina – os incas na América do Sul e os maias e astecas na América
Central. Os negros, na África, também não abriram mão de ter seus escravos.
Hoje, escravidão é uma ideia concebida a partir dos últimos
500 anos e de forma muito generalizada, como se somente negros tivessem sido
escravos. Outra ideia equivocada é aquela de que os negros foram totalmente
passíveis na história da escravidão. A concepção de que a África foi invadida
pelos europeus dominando os negros arbitrariamente pelo simples fato deles
serem negros é uma representação superficial que nem sempre corresponde aos fatos — essa versão fruto de uma visão simplista e ideológica da realidade.
Vejamos, a escravidão foi uma instituição política
justificada sob a orientação de uma ordem social e também econômica — sendo
esta segunda bem mais definida, pois os escravos eram a principal mão de obra utilizada na agricultura. O que pouca gente parece não saber é que antes
mesmo dos europeus alcançar a costa oeste do continente, já era rotineiro os
reis africanos subjugar seu próprio povo. Há, segundo o historiador Niall Fergunson, registros de escravidão na África
ainda no século 2, ou seja, muito antes dos europeus colocarem os pés ali. Como
aponta o historiador Paul Lovejoy, que passou décadas no continente africando pesquisando sobre o assunto, a escravização era uma atividade organizada
entre os africanos, aprovada pela lei e pela tradição — além de ser algo estrutural da vida social, econômica e política. A África, séculos antes da chegada dos europeus, foi constituída por impérios, como o de Oyo, que viveram justamente do aprisionamento e tráfico de escravos. Por ser uma prática
extremamente lucrativa, os árabes eram seus principais clientes. O Império Egípcio viveu e durou com base na exploração de escravos e os muçulmanos deram continuidade a essa tradição de forma impiedosa.
Foi somente a partir do século 16 que as excursões portuguesas
chegaram à África, e já encontraram ali um mercado de escravos em pleno funcionamento; ou seja, todos os escravos que vieram para as Américas já eram escravos lá. As relações foram pacíficas ao ponto de haver registros de
casamentos entre as duas etnias. O comércio era a principal relação girando em
torno de produtos como armas de fogo, peles de animais, tecidos, marfim e
também escravos. Deste então o comércio se expandiu pra Europa em geral, tendo como a passagem dos europeus pela África a abertura de escolas, hospitais, estradas, e outros benefícios, inclusive a abolição da própria escravatura. Isto é, paradoxalmente, os europeus, que foram os primeiros a
comercializar escravos negros no Ocidente, foram também os primeiros a tomar
consciência dessa prática repugnante. Foi uma corrente do Iluminismo — uma
expressão tipicamente ocidental — que pôs fim à escravidão por meio do
movimento abolicionista inglês organizado por cristãos em 1787.
Portanto, é seguro lembrar que os primeiros a lutarem contra a escravidão,
anotem bem, eram ocidentais, brancos e cristãos. Sem esquecermos, claro, do
fato de que ser branco foi algo absolutamente irrelevante nesse processo,
principalmente para um abolicionista. Em suma, o Ocidente e o homem branco não inventaram a
escravidão — ao contrário, o Ocidente acabou com ela.
O movimento abolicionista teve uma repercussão astronômica, o
que faria o tráfico de escravos ser extinto em 1807 em toda Europa, mas, não no
mundo. Na América, o comércio escravista ia de vento em popa, sendo o Brasil o
último país a aderir a abolição em 1888. Na África, a prática continuou até 1928 na Serra Leoa, e até 1950 no
Sudão. No Marrocos só teve fim em 1980, sendo praticado em várias outras partes
desta região ainda hoje, de forma ilegal. Resumindo: o homem branco não inventou
a escravidão, na verdade pôs fim nela.
Além da pouca vibração sobre esses fatos nos livros que
circulam por aí, há também aquela moçadinha que deturpam a história e ainda faz
uma equivocada relação entre escravidão e racismo. A relação existe em parte, mas
não chega a ser uma relação direta. Racismo é uma insanidade moderna e tem seu
desenvolvimento mais expressivo aqui, em terras americanas.
O racismo pode ser definido como uma agressão moral, ou seja, a
pretensiosa doutrina que sustenta a superioridade biológica e cultural de
determinado povo ou grupo. Essa pretensão teve sua expressão mais violenta nos
Estados Unidos. O racismo americano é diferente do racismo brasileiro. Lá o
racismo foi estabelecido através do ódio; existe uma apaixonada aversão ao negro que
nubla a consciência de vários americanos — principalmente na região sul do
país. Como deixa claro o professor Lovejoy, a expressão mais extrema de racismo
nos Estados Unidos identifica como african-american
qualquer pessoa que é percebido de algum modo como descendentes de africanos: "Uma
só gota de sangue afro-americano, e você é negro. Passar a ser branco se torna um
conceito. Isto jamais faria sentido em um país com a história do Brasil”.
Os negros, nos Estados Unidos, mesmo depois de livres, foram
um povo totalmente marginalizado, sem acesso às dimensões básicas da sociedade:
eram proibidos a presença de negros em restaurantes, escolas, igrejas, espaços culturais,
clubes, etc. A segregação foi uma realidade formal até a metade do século 20.
No Brasil em particular, e na America Latina em geral, as coisas foram mais distintas. Na obra Escravismo no Brasil,
Francisco Vidal Luna declara que mesmo diante da escravidão, os negros
brasileiros, ao contrário dos indivíduos livres do sul dos Estados Unidos, “não
eram, definitivamente, um grupo isolado ou marginalizado, sem acesso aos
recursos da economia aberta”. Fergunson também destaca que na America Latina aceitou desde o início a realidade das uniões inter-raciais entre brancos, negros e índios, eram classificados em hierarquia cada vez mais elaboradas. Nos Estados Unidos já houve uma tentativa de proibir tais uniões, ou pelo menos de negar sua legitimidade.
No Brasil, os negros tinham mobilidade e passagem para
qualquer camada social; por meio do trabalho, uma parcela dos escravos obtinham sua alforria. Exemplo claro seria Dom Obá II (1845-1890), oficial do
exército imperial e amigo pessoal do Imperador. Outro fato interessante é o
grande registro de mulheres negras que depois de conseguirem carta de alforria,
apesar de carregar o estigma de sua cor, usufruíam contraditoriamente de maior
liberdade que as mulheres brancas. Narloch afirma que: “Enquanto as donas ficavam
em casa debaixo das decisões do marido e cuidando de sua reputação, as negras
circulavam na rua, nas lavras e pelas casas, conversando com quem quisessem e
tocando a vida independentemente de maridos”. Os registros de mulheres livres
revela outro fato: boa parte delas eram donas de escravos também — e isso não
era exceção. Como sugere Gilberto Freire, a alegria do africano marcado pelos rituais e danças, contrabalançou o caráter melancólico do português. Ou seja, a alegria e a bondade do africano são em grande partes responsáveis pela doçura que marca as relações senhor/escravo no Brasil.
Há também vários registros de escravos que se tornaram
traficantes e donos de navios negreiros. Alguns bem-sucedidos foram José
Francisco dos Santos (Zé Alfaiate), João de Oliveira e Joaquim d’Almeida; todos
se tornaram ex-escravos e construíram fortuna em cima de tráfico de gente. Se
os negros não viam uma objeção moral à escravidão não era por causa de um fator
inconsciênte da subjugação européia, e sim por que em parte os próprios negros
se beneficiavam com essa prática. Esta era a consciência da época validado pela
lei e pela tradição e não podemos fechar os olhos pra este lado da moeda.
Só podemos entender o racismo no Brasil à luz desta
perspectiva. Aqui os negros não foram vítimas de ódio e da repulsa generalizada
como foram nos Estados Unidos — lá, a xenofobia pulsou em várias direções: aos
negros, índios, irlandeses, chineses, latinos, etc. O racismo no Brasil não se
legitima através do ódio de uma luta de classe (branco vs. negros). Reduzir
esse fenômeno complexo a uma análise ideológica como esta é definitivamente não
entender o assunto.
No Brasil, o racismo é latente pela condição do medo e do
desprezo, não do ódio. O negro é estereotipado como “bandido”, marginalizado
nas favelas; pintado na mídia como o porteiro do condomínio, como a garçonete
do boteco ou como a empregada de alguma madame. Muita gente comprou essa ideia
e passou a ver o negro como o pobre que de alguma forma quer obter vantagem
pela desonestidade. Alguns olham com o amparo de uma lente vitimista, outros
enxergam sob a ótica da impiedade. Os primeiros acham que o problema pode ser
remediado com cotas, dando mais oportunidades, implantando ações afirmativas
para amenizar a desigualdade. O segundo grupo acham que não existe problema
algum — é “faca na caveira”. Os dois grupos são hostis e muitos levam em si um
discurso bélico promovendo mais divisão ainda.
Devo concluir dizendo que minha análise não foi gerada
através de uma confrontação ideológica, mas puramente de uma curiosidade. Ou
seja, não é uma construção de crenças e sim uma investigação de um suposto
conflito histórico. Diante de um mundo cada vez mais dividido, sigo caminhando
olhando para o ser humano como ser humano e nada mais. Essa divisão entre raças
só dá mais munição pro racismo vencer a guerra — no final todos nós seremos perdedores. Há de se entender que um homem não é seu tom de pele, mas a sua
consciência — que é colorida apenas por suas perturbações. Assim, distraído leitor, racista
é quem faz distinção entre bancos e negros; há raça humana, e racista é quem
vai além disso.
©2015 Lindiberg de
Oliveira
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