Como a Igreja virou igrejas
terça-feira, 24 de maio de 2016
O princípio da Igreja é
fantasticamente simples e muito bem elaborado. A Igreja era vista como uma
simples reunião, e não passava disso. Uma reunião que com o tempo virou uma
comunidade, não por que todos eram iguais, mas simplesmente por que todos
compartilhavam do mesmo ideal: “convencer o mundo do reino de Deus” inaugurado
pelo Cristo (Atos 19.8, 28.23).
Sem pretensões de grandezas ou de
algum tipo de ascensão política, os primeiros cristãos se gloriavam em suas
tribulações, se identificavam com os pobres, amavam-se mutuamente; dividiam
seus bens com os mais necessitados sem nenhuma ambição de acúmulo de posses. A
Igreja se constituía no mundo como essa comunidade em fluxo e não como uma
instituição fixa e paralisante que faz de Deus um ídolo.
Igreja se compreendia como um corpo
que se reunia nas casas, numa escola
e até mesmo em cemitérios (Rm 16:5,23); se reuniam como Igreja e não nas
igrejas, pronunciando a Boa Nova, convidando o mundo a ser, e não a ter Igreja.
E os que resolviam ser, consideravam-se como aqueles do Caminho somente (Atos 9.2, 19.9, 24.14). O projeto de Jesus estava
se concretizando. Seu reino — evidenciado pela existência física da Igreja —
era visto continuamente como o Caminho: um lugar sem endereço determinado, uma
direção da qual Jesus não marcou um ponto de chegada.
Infelizmente esse quadro não
persistiria por muito tempo. Aproximadamente três séculos depois, o imperador
Constantino, que era adorador do deus sol, executou uma jogada de marketing
político ao se converter ao cristianismo. Não foi uma conversão autêntica e,
como o Império era marcado por uma cosmovisão politeísta, era comum cada deus
ter o seu templo de adoração. Jesus não tinha um templo, logo, resolveram
edificar um lugar respeitável para que o Filho do Homem fosse venerado, assim
como os outros deuses. Com o templo nascem também hierarquias bem definidas, os
dogmas irredutíveis, a centralização do poder religioso, a aliança com a
política, etc. O Caminho começou a
virar estradas e o Reino logo se identificou com o Estado. A comunidade
orgânica do Evangelho foi substituída por instituições que mecanizou
comportamentos, entorpeceu consciências. Nessa esfera o amor é suprimido, a
graça é violentada, sobrando apenas exigências de um Deus distante que precisa ser temido, semelhante aos
deuses gregos.
A partir de então deram início a construções
grandiosas de catedrais e templos gigantescos, com uma arquitetura que seguia o
mesmo modelo das basílicas e das sedes governamentais de Roma. As catedrais
foram variando de acordo com as ocasiões contextuais na história. No início
eram semelhantes aos templos greco-romanos, passando a ser idênticos a palácios
de reis. Edificações monumentais que atravessaram séculos como uma das boas
heranças deixada pelos medievais; uma herança que ainda hoje nos enche os
olhos.
A construção de templos na Idade
Média foi algo espantosamente magnífico, pois exalava arte, e a beleza era cultuada como um fenômeno transcendente. Através da arte e da beleza podemos ver Deus nos templos antigos, como uma
tentativa de capturar a natureza de uma experiência que não encontramos mais
nos dias de hoje — pois a arte está em guerra com seu passado. Com a chegada do
capitalismo e a pós-modernidade, castelos foram substituídos por shoppings e as
igrejas tornaram-se um reflexo dessa cultura que a imita tanto em sua estrutura
externa (estética) quanto interna (administrativa) — só distinguimos um
shopping de um templo evangélico por causa da placa e tanto um quanto o outro
está interessado somente em vender um produto, ou fazer de você um produto. Bem,
parece-me judicioso deixar claro que as exceções estão aí, e que generalizar
não é um caminho apropriado.
Com o advento da Reforma, o próprio
Lutero tentou evitar que essa patologia de grandeza continuasse. Mas como podemos
observar, as pessoas ainda insistem em edificar uma morada aconchegante para
Deus, e a cada dia que passa perseveramos incansavelmente em confundir templo com
Igreja. Essa confusão gera no indivíduo o sentimento de segurança, de proteção,
de garantia de barganhas que o afasta da verdadeira experiência mística com o
Cristo ressurreto. Uma experiência marcada por uma liberdade que arrasta o
indivíduo para um mundo hostil e sem garantias, onde todas as convicções,
autoridades e até mesmo o próprio sujeito passa pela peneira da dúvida e do questionamento.
Esse é o carimbo da fé na consciência, que isola o indivíduo, que o
individualiza e o torna único diante de Deus. As igrejas, ao contrário, insere o indivíduo na multidão, diluindo sua consciência na massa; todos orientados a encenar o mesmo ritual, diante da mesma linguagem, falando o mesmo dialeto. Nesta atmosfera, o questionamento e a dúvida são totalmente esmagados.
A necessidade de um lugar de
adoração a Deus não é o que entra em questão aqui. Podemos ter um lugar, um
templo, no entanto, há de se cultivar a consciência de que é apenas um lugar
como qualquer outro. Não é o lugar que é o problema, mas sim a demarcação entre
“sagrado e profano” a partir do
lugar. O questão é condicionar Deus ao lugar,
criando um ser sagrado à nossa imagem e semelhança. Assim, o problema do lugar
se constitui através da burocracia implantada fazendo da igreja a ponte exclusiva entre
Deus e os homens — se não é a ponte, no mínimo está no meio do caminho cobrando
pedágio.
Nesse sentido, as intenções do
Nazareno foi desmantelar toda essa marca deixada pelas religiões ocidentais,
pois a noção de templo era concebida antes mesmo de Israel existir como nação —
ou seja, o templo não é uma invenção judaica, mas sim pagã, que se constituiu
no mundo antes mesmo de Moisés fincar o primeiro alicerce do Tabernáculo no
deserto.
O que os religiosos viam como um
ponto de encontro para um relacionamento com Deus, Jesus enxergava um salto
para a legalidade como um reflexo da paixão humana pelo controle e segurança. E
ele demonstra isso através de histórias como aquela do bom samaritano, em que
os que eram ligados à instituição (o levita e o sacerdote), foram justamente os
que negaram caridade ao necessitado.
Portanto, Jesus começa a demolir
todos os trâmites da religião institucional, mostrando que Deus se revela de
forma autêntica não nos rituais, pois pra ele a verdadeira epifania é o grito do
oprimido (Mateus 25:42-45). Ou seja, Deus não cabe dentro de definições engessadas, como se a
teologia estivesse pronta e acabada. Aliás, Deus não cabe dentro de definição
nenhuma. Ele é o Indefinível. Definir é por limites; definir Deus é o
mesmo que marcar um começo e um fim para o Infinito.
Ora, hoje qualquer cristão está
informado de que igreja somos nós. O que não se pode observar é essas mesmas
pessoas internalizando e vivendo isso até às últimas consequências, que seria a
simples tentativa de viver como Jesus: viver em um mundo amando pessoas e não
placas. A proposta é realmente voltar ao princípio, à simplicidade do
Evangelho. Talvez seja uma postura radical e perigosa demais para almas de
porcelanas, que encontram em suas denominações um lugar aconchegante, um modo
de blindar suas crenças sem precisar encarar o frio e o terror de uma
existência autêntica, onde o mundo é encarado com todas as suas contradições.
Sinclair Lewis, em seu romance Elmer Gantry, ainda na década de 1927,
conseguiu ser bem mais impetuoso, mais dramático, e mais ousado — de uma forma
que eu jamais poderia ser. Um apelo que reflete bem a situação em que as
igrejas chegaram, e que discerne de modo decisivo como é uma igreja que deixa
de ser Igreja:
Ninguém neste recinto, incluindo o seu pastor, acredita na fé cristã.
Nenhum de nós daria a outra face. Nenhum de nós venderia tudo que tem e daria
aos pobres. Nenhum de nós daria o casaco a um sujeito que tivesse tirado nosso
sobretudo. Cada um de nós acumula todo o tesouro que consegue. Não praticamos a
religião cristã e não temos qualquer intenção de praticá-la. Logo, não
acreditamos nela. Eu portanto me desligo, e aconselho vocês a pararem de mentir
e se dispersarem.
©2016 Lindiberg de Oliveira