Fé e razão, entre a loucura e a inteligência
sábado, 7 de maio de 2016
Entendo a fé como o maior de todos
os saltos; um salto para as camadas mais profundas da existência na angustiante
tentativa de criar uma abertura no universo para tocar o infinito. Louis
Lavelle declara que isso é uma dialética permanente a unidade da autoconsciência.
Uma experiência tão cheia de sentido que suprime qualquer hiato entre a
realidade e a idealidade.
Assim, é um erro compreender a fé como
um mero símbolo de barganha para conseguir os favores de Deus. Os cristãos
abandonaram o sentido — e consequentemente a experiência — existencial da fé
contida nas Escrituras, assimilando-a a ajuntamentos cada vez maiores nas
igrejas, todos orientados na mesma direção e arrolados no mesmo engano; transformaram
a fé em sinônimo de conquistas financeiras, numa relação de posse e egoísmo, de
obediência aos usos e costumes, aos dogmas, quando na verdade é o oposto disso;
ou seja, uma viagem para as determinações mais profundas da existência tendo
exclusivamente a implicação do encontro com o Eterno. Trata-se não só de seguir
uma verdade, mas de experimentá-la, e vive-la até as últimas consequências.
Lavelle nos faz entender que essa
não é uma experiência permanente — é rápido e embaraçoso; "são momentos privilegiados
que parece que o Universo se ilumina e afigura-se como se nós mesmos tivesse
escolhido nosso destino; depois o Universo volta a se fechar e logo tornamo-nos
novamente solitários e miseráveis". Portanto, a sabedoria consiste em fazer permanecer em nossa memória esses momentos paradoxais e construindo sobre eles a trama da nossa
existência quotidiana, e por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito.
A confusão em apreender a fé reside
em confundi-la com crença. Ellul, que faz uma lúcida distinção entre fé e crença, me convenceu de que crenças são meras insígnias e práticas que no
final apenas atrapalha o grande passo para a fé. A crença turva nossa percepção de
Deus transformando-o num ídolo, isto é, numa força a ser manipulada e temida. A
fé, como deixa claro Kierkegaard, “é um incrível paradoxo capaz de transformar
um crime em um ato santo agradável a Deus; paradoxo que não pode ser reduzido a
qualquer raciocínio, pois principia exatamente onde termina a razão”. Dessa
forma, Kierkegaard relaciona a fé à maior paixão humana, “uma relação absoluta
com o Absoluto”.
Quem abraça a fé abraça também o
desconforto, a insegurança e a dúvida, pois é um movimento que o deixa sozinho
com um Deus que talvez pode não estar lá. Logo, a razão não serve mais como um
guia, porque ainda está emaranhada pelos limites estabelecidos da cultura e da
sociedade. Abraão não se deixou levar pelos elementos culturais ou os valores
éticos de sua época ao decidir sacrificar seu próprio filho. O pai da fé se
lançou de imediato em direção ao paradoxo da vida. Por amor a Deus, e de modo
idêntico, por amor a si mesmo.
A fé é um milagre e ninguém está
excluído dela, entretanto, não é conveniente dizer que os filósofos gregos
deram o salto da fé. Porém, podemos acatar o esclarecimento de Eric Voegelin,
que afirma que através de uma ordem noética
os gregos tiveram o salto no ser. Sócrates fez o movimento infinito sob o
critério intelectual, puramente cognitivo. Neste caso, a razão se torna a
simples tendência da inteligência humana em direção ao fundamento, ou seja, a ordem divina. Para Platão, a realidade não
pode ser desprovida de um alicerce transcendente, pois seria impossível pensar
logicamente sem as determinações dos princípios universais. Isso é importante,
e chegar aonde eles chegaram já é uma tarefa bastante elevada para as forças
humanas; contudo, não seria possível abrir essa perspectiva sem o toque divino.
Os gregos entendiam a razão como o
espírito, portanto, tudo que daí procede já nasce fechado para os limites da
razão. Logo, a fé proposta pelo Evangelho, para eles era filosoficamente
loucura, um suicídio intelectual. Platão e Aristóteles foram aos limites da
razão na tentativa de esclarecer a realidade conceitualmente, através de definições
e explicações. Segundo esse modo de encarar o mundo é possível dissecar a
realidade a partir de um refinamento constante dos conceitos de que trata,
tendo sempre a razão como a ferramenta que baliza e orienta o indivíduo na
busca da verdade.
A questão é que o Evangelho
estabelece um novo sentido para o que seja a verdade; eis a grande loucura do Evangelho: a verdade não pode ser
depurada, corrigida, não pode ser dividida ou sequestrada pela retórica, pois
não se trata de um conceito e sim de uma Pessoa. Não se trata de aderir a uma
“doutrina cristã”, mas de confiar numa pessoa que se comunica com você. Então,
não há outro modo de compreender e discernir a verdade a não ser através da fé.
Por isso Paulo nos guia a seguir a verdade em
amor; ou seja, trata-se seguir a
verdade, e não de adotar um sistema de doutrinas ou teorias obcecadas pela
perfeita formulação conceitual. Seguir a verdade é o mesmo que “seguir Jesus” —
e viver todas as consequências dessa escolha.
Ainda assim, é preciso deixar claro
que o salto da fé não exclui a razão, não é um movimento irracional preenchido
de uma realidade abstrata. A fé assimila a razão formando uma unidade na
consciência, reconhecendo o Definitivo em sua verdade incontestável. Portanto, a fé é a presença cada vez mais clara da realidade, não aceita nada
imposto de fora; encara tudo com a máxima seriedade em face daquilo que é
permanente, da eternidade, e em última instância, daquilo que é decisivo. Tudo
que é transitório será olhado à luz do que é definitivo.
Diante disso temos duas escolhas:
aceitar o refúgio da crença como um escape da realidade, como consequência da
nossa busca natural por proteção, ou ser inundado pela fé e viver como um
andante na existência, e não como um pedestre.
©2016 Lindiberg de Oliveira
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