O poder de quem abriu mão do poder
segunda-feira, 2 de maio de 2016
Quando exponho meus pensamentos políticos, sempre faço de forma desajeitada, como quem fica comendo pelas beiradas. Numa dessas brincadeiras, sentado com alguns amigos em frente uma lanchonete, disse desanimadamente que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Frase épica de Lord Acton.
—
E Deus — replicou um amigo, discordando de modo categórico —, Deus é o detentor
de todo poder e autoridade.
Bem,
preciso adiantar que o homem não precisa do poder para se corromper. Essa
tendência humana é inata. O desejo de dominar e de subjugar já está embutido na
própria natureza humana, e isso é irreversível; o poder, apenas potencializa esse
desejo lucifericamente.
O
interessante dessa questão é que praticamente em qualquer contexto teológico,
esta afirmação torna-se contundente: Deus é o detentor de todo poder e
autoridade. Esta declaração nos leva de imediato para lugares comuns, com imagens
dantescas de um Deus guerreiro, poderoso, implacável e que destrói seus
inimigos. Penso que Jesus, o único homem que revela a totalidade do caráter e
da ação divina, nos apresenta Deus com traços diferente desses desenhados na
imaginação dos evangélicos.
Explico.
Mas antes vamos voltar um pouco para o Antigo Testamento. Lá, Deus é
apresentado com muita pompa, manifestações deslumbrantes, trovões, raios e
fogo. Apesar disso, o vemos andar em consonância com gente como Abraão, que
demonstra ter uma moral inferior à dos adoradores do deus sol; fica do lado de
gente como Jacó, que engana o irmão descaradamente; perde tempo tentando
convencer Moises, um gago com antecedentes criminais, a guiar um povo
escravizado numa terra alheia; Deus acerta os ponteiros com murmuradores
ruidosos como Jó, assassinos como Davi, mas, em nenhum momento Deus se deixa se
compactuar com altivos, presunçosos e arrogantes. Deus trabalha ao lado de
gente aparentemente fraca, incapaz, daqueles que recusam o chamado, pois, só os
que rejeitam o poder estão aptos a geri-lo.
Os
hebreus é o povo que melhor dilataram a revelação de Deus – quando o povo era
apenas povo. E esse povo foi escolhido não por que era a melhor nação ou a mais
bem sucedida; pelo contrário, eram escravos. E Deus age no meio desse povo não
como um senhor soberano e dominador. Não! Deus intervém na história como um
libertador. O Êxodo, que na tradição hebraica é o primeiro livro da Bíblia,
apresenta justamente o Senhor que nos trás liberdade.
Diante
da leitura do Pentateuco vemos que Deus levantou Israel para ser como espelho
para os outros povos. Um dos ditames da Lei era para não se juntar aos outros
governos, mas caso os outros reinos quisessem manter vínculo, o conselho era
para que os israelitas os recebessem passivamente. Pois bem, Israel não só
quiseram manter conexão, como também quiseram um governo semelhante aos outros
reinos. Diante de pessoas com consciência mais elevada — como Samuel —, isso
foi uma violação, uma atitude retrógrada. Diante de Deus, a atitude foi como
uma total rejeição.
A
partir de então, a Lei — que era a suprema autoridade entre o povo, acima de
sacerdotes e reis —, não estava sendo o suficiente para guiar o povo. Deus,
então, coloca em cena uma comitiva de profetas que tinha como missão denunciar
a corrupção do povo, em geral, e do poder oficial, em particular. Os profetas —
tendo Elias como seu representante —, geralmente são aqueles que falam o que
todo mundo tá vendo, mas ninguém tem coragem de bradar. A maioria de suas
acusações sempre bate de frente com o rei. Sem dó e nem piedade, o profeta é
aquele que fala em nome de Deus, e decididamente traz juízo sobre o poder
centralizado que oprime e leva a nação ao abismo. O próprio Davi é um dos
maiores exemplos; homem segundo o coração de Deus, autor de poesias belíssimas
e ao mesmo tempo um homem truculento, homicida, péssimo pai e vingativo. Não
escapou do juízo de Deus por seus abusos de autoridade.
As
discursões sobre o poder não tem fim. Thomas Hobbes (†1679), teórico sobre a
lógica do poder de estado, diz em seu famoso Leviatã que os homens em geral têm
a tendência perpétua de desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a
morte. E a razão disso não é a espera de um prazer mais intenso, mas,
simplesmente o fato de que o poder só pode ser garantido na busca de mais
poder. O principal motivo para o rompimento do psicanalista Adler com Freud foi
por achar era o poder e não o prazer (a libido) a pulsão central da psique. E
como disse George Orwell, “ninguém toma o poder com o objetivo de abandoná-lo.
Poder não é um meio, mas o fim”.
É
notável nas Escrituras o desprezo de Deus pelos poderosos. Diz o salmista que:
“Embora o Senhor seja excelso, atenta para o pobre e humilde, mas ao soberbo, o
rico e o dominador, os rejeita, pois conhece de longe” (Salmo 138:6). No Evangelho de Lucas, todos os
ricos são aferidos com julgamentos ironicamente perturbadores. Jesus se mostra
nos Evangelhos como um Deus único, singular, ímpar e totalmente imprevisível,
chegando ao ponto de retirar de si todo o manto que o determinava como um deus —
tradicionalmente concebido pela historia.
Jesus
deixa subentendido que o poder é divino somente pela origem; no seu exercício
segue os mecanismos de todo poder profano com seus mecanismos de segurança e de
controle. Dessa forma, o carpinteiro de Nazaré se apresenta como um Deus que
rejeita ser deus, sendo assim o verdadeiro Deus; ele “se esvaziou, assumindo
forma de servo e a si mesmo se humilhando”, admitindo que é justamente a sua humildade a coroa de sua gloria. E por esse motivo, o nome de Jesus está acima
de todo nome (Ef 2:7-11).
Tratando
o nosso mundo de forma irônica — pois, não há outra forma de abordar um mundo
decaído como o nosso —, Deus vira todos os valores concebidos por nós de cabeça
para baixo. “O maior é aquele que mais serve”, “aquele que se humilha é que é
verdadeiramente exaltado”, “quando estou fraco é ai que sou forte”, “a
sabedoria dos homens é loucura pra Deus”, e a lista não para aqui, deixando a
entender que o poder, na verdade, está nas mãos daqueles que rejeitam no encosto
da simplicidade, na doçura da naturalidade.
Dessa
forma, nem sempre é possível notar isto nas manifestações divinas do Antigo
Testamento, pois, Deus geralmente é ofuscado por revelações deficientes e
desajeitadas. Sobremodo, Deus só é verdadeiramente revelado em sua totalidade
na pessoa de Jesus — e somente nele. Nem Abraão, nem Moises, ou Davi, ou Elias,
conceberam a revelação de Deus fielmente. Somente na pessoa de Cristo a
revelação foi filtrada com total pureza. Não é por acaso que Paulo afirma que a
Lei é sombra das coisas que haveriam de vir, ou um escravo, que serviu apenas
para nos guiar a verdadeira realidade. Jesus é nosso modelo de subversão.
©2016 Lindiberg de Oliveira
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