A relação entre palavra e imagem
terça-feira, 6 de setembro de 2016
Há milênios a literatura se arrisca a fazer uma releitura exemplar da realidade humana. Os romancistas com suas obras de ficção conseguiram expressar, até mais que os filósofos, um critério do real que ultrapassaram o seu tempo. Aliás, não só o seu tempo, mas o tempo. Apesar de cada obra de arte ter sua data de nascimento, ela se torna atemporal ao nos fazer apreender a eternidade naquele lapso de segundos em que nossa alma se abre para verdades até então ocultas.
Essa é a experiência quando se fita
os olhos com profundidade em obras como de Homero, Dante, Shakespeare,
Dostoievski, Kafka, etc. São histórias com aquela ousadia de uma narrativa
sofisticada, que também nos ajuda a criar nossas próprias narrativas, clareando
diante de nós nossos próprios dramas.
O cinema, sobreposto à literatura, também
nos orienta diante de nuances da realidade para uma compreensão melhor da vida
e da natureza humana. É isso que aponta filmes como 2001-Uma odisseia no espaço (1968), O poderoso chefão
(1972), Laranja mecânica (1971), Blade Runner – O caçador de androides
(1982), Clube da luta (1999), A vila (2004), Na natureza selvagem (2007), Watchmen
(2009), O homem duplicado (2014), Mad Max – Estrada da fúria (2015), O
regresso (2016). Contudo, como
pontua Martim Vasques da Cunha, existe uma hierarquia sobre o assunto: “uma coisa é
literatura; a outra são produtos derivados como o cinema e as séries de TV. A
primeira é uma experiência que estimula a interioridade; a segunda atiça, em
sua maioria, os sentidos da visão e da audição, mas também permite um diálogo
frutífero entre a imagem e a palavra escrita”.
Quando cultivamos esse intercâmbio entre a palavra e imagem,
podemos contemplar no cinema uma espécie de espelho da modernidade que
revela o que há de mais belo — assim como o que há de mais traumático — na
humanidade; A lista de Schindler, de
1993, por exemplo, retrata estes dois
aspectos ao exibir a luta interior de um homem que se nega a fazer parte, mesmo
de forma passiva, de um dos maiores genocídios da história. Schindler é o homem
que discerniu a realidade do bem e do mal; o homem que não se permitiu ser
massa; o homem que preservou as determinações de sua consciência individual mesmo
pondo em risco sua própria vida.
É desse modo que o mundo cinematográfico se constitui como
uma dimensão profunda da arte, captando os movimentos invisíveis do espirito. Apesar de a imagem ser
atraente por sua fácil assimilação, elas ultrapassam a concepção vulgar de
meras sequências de imagens para fins de entretenimento.
Cineastas como Stanley Kubrick, Martim Scosese, Woody Allen,
os irmãos Coen, Quentin Tarantino, Francis Copola, Clint Eastwood, etc., são
gênios do suspense, do mistério, da dissimulação, que gera no espectador
experiências únicas através de visuais estonteantes e personagens caricatos
moldados por histórias que às vezes dão um nó no cérebro. Apresentam-nos dramas
de personagens que poderiam acontecer com qualquer um de nós.
Na literatura, obviamente, o leitor é convidado a fazer um
esforço de imaginação para contemplar cada detalhe do que se lê. É necessário
uma preparação da memória, da fantasia e da expressão verbal correspondente
para ser capaz de sondar o mundo de experiências que está por baixo de cada
trama, de cada relação e de cada evento. Por outro lado, diante do universo
audiovisual, boa parte desse esforço é dispensável, pois salta aos olhos e
ouvidos um conjunto abundante de experiência deixando para o sujeito apenas o zelo
de criar uma relação lógica dos fatos ocorridos.
Diante de uma época onde o espetáculo é consumido 24 horas
por dia, orientado pela publicidade, pela mídia, pelo marketing, a sedução da
imagem fala mais alto que a sutileza das letras. Preferimos o encantamento dos
simulacros a ter de encarar o teatro perturbador de Shakespeare. Temos de fazer
um retorno aos clássicos da literatura mundial, um verdadeiro diálogo com os
mortos, e experimentar todas as mortes narradas tanto por poetas, escritores,
roteiristas e quem mais queira entrar neste ofício. Assim, poderá haver um
diálogo vibrante entre imagem e a palavra. Um diálogo que cria em nós uma
abertura para uma viagem da alma. Uma viagem com todas as volubilidades de
qualquer viagem; às vezes negra e gelada, às vezes bela como um dia de sol.
©2016 Lindiberg de Oliveira
Marcadores:
Cinema
,
Cultura
,
Filosofia
,
Literatura